Cartas para a Paz


Olá, caríssimos! Recebi um e-mail do meu tio (Marco Mello) falando de um projeto o qual participou, bem bacana, chamado Cartas Para a Paz. Gostaria de compartilhar com vocês essa experiência como um todo, mas também discutir essa Carta especificamente, no que tange a reflexão acerca de Educação Popular, sua compreensão e prática.

Aqui o link do Cartas para a Paz.

Este link que fala um pouco mais sobre a palavra como inspiração.
  

CARTA AOS CAMARADAS

Para as crianças, grandes e pequenas, de todas as idades...

“De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi, sobretudo, que a Paz é fundamental, indispensável, mas que a Paz implica lutar por ela. A Paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A Paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a Paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tenta miopizar as suas vítimas.”

Paulo Freire

Espero encontra-te bem.

Te envio esta carta, que chega à tuas mãos na forma de um livro impresso ou um .pdf, ou mesmo em uma inusitada garrafa-mensagem, mas que foi remetida por e-mail e antes disso, escrita com lápis em papel (à moda antiga, lembras como era antes?) desejando saúde, força e luz na tua jornada. Saudade de ti e dos teus.

Te escrevo para contar do quanto temos avançado por aqui na área de formação de educadores junto às escolas, grupos populares, ONG´s e Movimentos Sociais do campo e da cidade na difusão e vivência de uma verdadeira Educação e Cultura de Paz: dialética, crítica e contra-hegemônica.

Então quero partilhar contigo essas nossas pequenas e grandes conquistas. Como lutadores e lutadoras do povo, sabemos que a paz é um fruto saboroso e nutritivo que nasce, cresce, se desenvolve e nos alimenta quanto vence as pragas e intempéries da injustiça social e da nossa própria ignorância e imperfeição. A propósito, viste que belo o texto de Freire que transcrevi acima? Achei que irias gostar.

Daí, sabes, estou cada vez mais convicto de que é preciso, o que chamo do “bom-combate à nossa vida alienada”. Por que, sem a superação da ideologia dominante, expressa no senso comum - essa forma de pensar e explicar o mundo que, em grande medida, reproduz a exploração, a exclusão e as formas de opressão como o racismo, o sexismo, a homofobia e a intolerância religiosa - não conseguiremos romper com a hegemonia burguesa em nossa sociedade.

Mas, enfim, vamos às boas notícias: ombro-a-ombro, nos campos, nas florestas, nas águas, nas cidades, a opção de estarmos com nossa classe, a classe que vive do seu trabalho, organizados, solidários e em movimento, bem o compreendes, tem nos humanizado, nos aproximando, nos tornando mais gente. Esse tem sido um aprendizado realmente extraordinário.

São tempos difíceis, é verdade! Mas estamos construindo, passo-a-passo, um novo projeto de sociedade no qual a justiça seja a medida de todas as coisas. E nesse processo também nos reconstruímos ao experimentar e vivenciar o cultivo de valores e princípios orientados para a solidariedade, o trabalho coletivo e a emancipação humana. Não tem sido um caminho fácil, como te relatei na outra carta, mas creio que é assim mesmo, para grandes transformações, grandes lutas.

Desde há muito, mais de 500 anos, nossos ancestrais têm lutado: para assegurar o sagrado direito á existência, por dignidade, por respeito às nossas culturas, por soberania, por direitos ainda tão distantes... Essa resistência indígena, negra, feminista e popular precisa ser lembrada, quando tombam nossos irmãos por não se acorvadarem e dizerem não aos senhores do capital. Como aconteceu ontem com o Cacique-nhanderú Kaiowá Nísio Gomes, morto com vários tiros de espingarda calibre 12 por pistoleiros a mando dos latifundiários da região de Amambaí, Mato Grosso do Sul. Como caíram ainda anteontem os trabalhadores rurais José Cláudio Silva e Maria do Espírito Santo Silva, no sudoeste do Pará, também assinados pelo agronegócio. E assim tem sido, aqui em nuestra America com Dorothi Stang, Chico Mendes, Bolívar, José Marti, Bertha Lutz, Sandino, Luiza Mahin, Zapata, Zumbi, Sepé Tiaraju, as Mães da Praça de Maio, Tupac-Amaru, Olga Bernário e Che Guevara e tantos outros mártires anônimos da luta popular, nossa gente.

É preciso lembrar nossa história, pois a memória é um campo privilegiado de disputa ideológica. A Utopia Socialista não é, certamente, um discurso para os dias de festa. É uma questão a ser efetivada desde o cotidiano – no trabalho de auto-organização da sociedade, inclusive da escola, e sabemos o quanto vale a pena esse esforço cada vez que nos encontramos com o brilho dos olhos de um pequeno que, cúmplice, sabe que somos seu parceiro de caminhada.

Haverá um tempo de reencontro que talvez consigamos dimensionar melhor o que vimos fazendo. Estamos construindo um novo mundo, ainda que entre soluços e greves como disse o poeta. Sigamos juntos, portanto, em nossas utopias libertárias, sem esquecer do que é de inarredável responsabilidade individual, nossas escolhas e nosso livre-arbítrio.

Como tu bens sabes o que penso, estamos aqui de passagem, nessa pele que hoje habitamos, em mais uma etapa de desafios e de convites à aprendizagens e evolução. Oxalá nosso reencontro permita, de forma límpida e transparente, dar umas boas risadas algum dia com esses anjos, arcanjos, espíritos, orixás, guias, seres mágicos e mitológicos que nos acompanham pacientemente nessa jornada...

Sei dos teus tantos afazeres, mas quando puderes me responde: num papel-manteiga com aquela tua letra caprichada, com envelope e selo, ou na velha máquina de datilografia (ainda a tens?), num cartão postal, que sabes que tanto aprecio, num bilhete entregue em mãos, num mail ou numa simples postagem nas redes sociais. Não importa como. Me dizes, o que tens feito nesse grande mutirão que nos propomos a realizar? Lembras de nossos combinados? contribuir na construção desse mundo onde caibam todas as diferenças e nenhuma desigualdade? Em que fileira te encontra na luta de libertação? Me contes um bocado de teus desafios e conquistas, tuas paixões e devaneios. Tenho sonhado contigo e acho que é um bom presságio!

Àqueles que, como nós, se reivindicam como educadores populares, coloca-se um grande desafio. Penso que devemos, como dizem os companheiros da Via Campesina, globalizar a luta e a esperança, com a socialização das boas práticas de resistência e afirmação de nosso projeto. Porque sabemos que a vida só é possível mudar significativamente com a superação do modelo sócio-econômico dominante do capitalismo que aí impera.

Se te falo assim, nesse tom de quem está encharcado do suor das frentes de trabalho, não quero que pareça a ti que não precisemos do aconchego, da ternura e da delicadeza. É claro que sim!

Somos centelhas de um fogo divino que em nós habita desde sempre. Lembremos disso.

As palavras me escapam agora, teimosamente, e esta lágrima desgarrada está a escorrer incorrigível em direção à folha, e ao coração... Talvez seja o cansaço e a emoção de escrever a ti que quero tão bem... Amanhã preciso sair cedo para mais uma jornada de trabalho, mas não imaginas o quanto me conforta saber que, apesar das distâncias, estamos juntos à Pachamama, à Terra-mãe, sintonizados com o espírito de justiça, na mesma estrada, no mesmo rio, na mesma senda.

Saudades de ti e do muito que ainda faremos juntos.

Força e Luz, sempre

Deste teu companheiro que tanto te estima

Marco Mello

Para refletirmos:

- Qual nosso conceito individual de paz? Como é a relação individual e coletiva com ela?
- É possível termos paz no mundo atual?
- O que podemos aferir dos trechos: 
"verdadeira Educação e Cultura de Paz: dialética, crítica e contra-hegemônica."; 
"Daí, sabes, estou cada vez mais convicto de que é preciso, o que chamo do 'bom-combate à nossa vida alienada'. Por que, sem a superação da ideologia dominante, expressa no senso comum - essa forma de pensar e explicar o mundo que, em grande medida, reproduz a exploração, a exclusão e as formas de opressão como o racismo, o sexismo, a homofobia e a intolerância religiosa - não conseguiremos romper com a hegemonia burguesa em nossa sociedade.";
e "E nesse processo também nos reconstruímos ao experimentar e vivenciar o cultivo de valores e princípios orientados para a solidariedade, o trabalho coletivo e a emancipação humana." ?
- Quem foram "Dorothi Stang, Chico Mendes, Bolívar, José Marti, Bertha Lutz, Sandino, Luiza Mahin, Zapata, Zumbi, Sepé Tiaraju, as Mães da Praça de Maio, Tupac-Amaru, Olga Bernário e Che Guevara" e qual a intersecção de suas lutas com nossas buscas, enquanto Liga?
- Palavras como amorosidade e espiritualidade me parecem muito presentes no texto da Carta, quais nossas vivências  e relação com a presença/ausência delas?

Espero que possa ajudar no nosso entendimento das questões existenciais e sociais e que tenhamos bons diálogos acerca!

Abraço,

Maíra Mello

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