Entre Memórias e Sorrisos


Estava sentada ao lado do seu namorado. Fizemos um cumprimento e apenas esse gesto iniciou a conversa. Setenta anos, olhar mutante, passava da tranquilidade apática para a inquietude curiosa em instantes, e tão logo ficávamos admirados com essa nova forma de olhar e ele já estava perdido em apatia novamente. Olhares a parte, nossa admiração e atenção aumentavam conforme a conversa se encaminhava. O encanto com o qual ela descrevia suas paixões nos cativou. Costurar, conversar, cozinhar, recortar e tantas outras coisas que a alegravam iam enfeitando o caminho de nossa conversa. Vez ou outra passávamos por obstáculos nesse caminho. O estigma da velhice e as incapacidades que surgem com ela, as memórias do que foi bom e passou e outras pedras que sempre existirão na vida das pessoas, mas que eram chutadas por nós.
Ai de repente surgiu uma constatação inusitada. Um pensamento repentino, algo que nos deixou sem jeito. Ao tentar responder uma pergunta feita por nós, a senhora se surpreendeu em perceber que a resposta havia desaparecido. Esforçou-se em buscar a lembrança que iria satisfazer o questionamento proposto por nós, o qual confesso não recordar qual foi, mas nada surgia. Ela ficou enraivecida, mas de uma raiva triste, como quando perdemos a pessoa amada e não mais sabemos distinguir raiva de tristeza. O que havia perdido era algo tão importante quanto um amor. Uma perda que não a matava, mas retirava um pedaço de sua vida.
Ainda com raiva, nos disse que tais esquecimentos eram comuns. Dizia ela estar consciente e ter conhecimento da falta de certas lembranças. “Talvez eu deva ser louca”, foi a sua conclusão. Contornamos dizendo que todos esquecemos das coisas. A senhora então insistiu em explicar sua condição, insistiu em tentar descrever o que se passava em sua cabeça, mas se enrolava em suas descrições. Não é uma das coisas mais fáceis explicar o que ocorre dentro de nossas cabeças quiçá o que não ocorre. Você conseguiria dizer o porquê de não ter lembrado o conteúdo estudado para a prova? Conseguiria explicar o porquê de ter esquecido o aniversário de namoro? Nossa memória é como a maioria das coisas do dia a dia, usamos sempre, sem no entanto saber como funciona.
Em um destes momentos de dificuldade, em que ela tentava se explicar, minha colega completou seu raciocínio, mostrando que estava acompanhando sua forma de pensar. A alegria voltou a aparecer em seu rosto. Se tornou difícil imaginar que algum dia aquela mulher havia sido triste. “Isso! Você me entendeu!”, ela nos disse com enorme alegria. “E eu que pensei que ninguém me entendia.” Agora as palavras saiam com facilidade de sua boca, em perfeita sintonia. Uma atrás da outra eram capazes inclusive de expressar o que ela sentia, tarefa esta impossível de ser realizada quando se envolvia a memória de fatos recentes.
Ela elogiou o sorriso de minha colega, sua vontade, sua juventude, pediu que não ficasse parada, que não enferrujasse por não fazer nada. Contou que apesar dos constantes episódios em que tinha um branco em sua memória, conseguia viver. Quando esses episódios ocorriam, não ficava tentando pintá-los com memórias, “pois se eu viver tentando fazer isso, acabo não fazendo nada”. Ela, assim que percebia que havia esquecido algo, ia fazer outra coisa. Foi uma profunda demonstração da capacidade adaptativa do ser humano. Em geral olhamos apenas para as alterações que as doenças causam nas pessoas, os chamados sinais e sintomas, mas esquecemos de ver as alterações que as pessoas causam nas doenças. As superações criativas, obra da plasticidade humana, a qual é vista apenas em uma medicina que se inicia no paciente, passa sim pela doença, mas termina sempre no paciente.

No final, um pouco depois da despedida, percebemos que o Mal de Alzheimer produz problemas sérios para as pessoas que o possuem, mas esses problemas provocam incríveis adaptações na forma de viver de tais pessoas. A doença no final não é um fator incapacitante que acaba com a saúde do doente. Ela é apenas um modificador de sua forma de viver. Um muro que exige que o escalemos para continuarmos vivos. A que se admirar aqueles que tem força para perpassar o muro. Afinal, o branco do esquecimento não nos impede de reparar no branco de um sorriso.




Um abraço forte e apertado,
Marina Anzolin e  Luan Menezes



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