A caixa de música

      Sempre gostei de música. Entende-la, senti-la, reproduzi-la, enfim, vive-la. Assim que soube que havia um piano no asilo da cidade, programei uma visita ao local e iniciei as idas até lá apenas para tocar. A motivação era mais egoísta do que “bem intencionada”. Queria praticar as músicas e exercitar meus dedos. No início, uma sensação de nervosismo se apossava de mim (o que os idosos iriam pensar de mim? O que eles pensariam ao ouvir meus erros ao piano?), logo em seguida, certa tranquilidade apareceu, dada a falta de importância da minha presença (como aspirante a músico) lá. Mas isso me incomodava. Por que ninguém conversava comigo?

Na segunda vez que fui lá, um senhor veio falar comigo. Notei logo a presença da demência, mas essa não mascarava uma vontade angustiante de interagir. Ele adorava música, e pelo jeito já havia tocado algum instrumento, pois sabia muito da teoria. Na terceira vez um senhor, sentado no sofá, me elogiou “Bonita a música!” e logo parei de tocar. Conversamos por algum tempo e quando vi já havia se passado muito tempo. Era o Seu Marcelino, muito inteligente e apreciador de filmes e futebol. Sai dali pensando em como a minha presença havia sido diferente para ele, e mais do que isso, como a conversa que tivemos fez bem para mim.

Segui indo ao asilo todas as sextas de manhã que podia. Com o passar do tempo eu tocava nos intervalos da conversa e o piano deixou de ser a minha motivação de ir até lá. Decidi entrar na Liga de Educação em Saúde.

As idas ao asilo, ao longo do tempo foram proporcionando novas formas de ver o outro e, principalmente, de me ver. Comecei a pensar no quão importante é um indivíduo, quão ricas as suas experiências e o quanto não aprenderia com isso. Além disso, as transformações “para dentro” foram se tornando cada vez maiores (qual o meu papel quanto estudante de medicina? O que espero do meu futuro como médico? Como venho levando a minha vida? Como posso melhorar a vida dos outros?).

A LES foi se tornando essencial na minha rotina. As idas ao asilo se tornaram motivo de preocupação (como será a visita de hoje?). Passei a reconhecer as faces e associá-las aos nomes, as histórias, e mais do que isso, passei a valorizar cada palavra dita, não por obrigação, mas pela potencialidade do conteúdo dessas palavras. Cada dia aprendia mais e deixava as ideias serem guiadas pelas experiências de quem já viveu muito mais do que eu.

Porém as conversas com um idoso por vez não me satisfaziam, uma vez que eles conversavam apenas comigo e não interagiam entre si. Queria vê-los interagindo, trocando as suas vivências e aprendendo, assim como eu. Não queria mais que a minha presença, uma vez a cada 15 dias, fosse a única oportunidade de conversar com alguém.

Então começamos com o grupo de idosos. Na primeira reunião não fui, mas os relatos foram de que tudo ocorreu bem. Na segunda reunião, após uma “coleta” de idosos pelos corredores do asilo, iniciamos com uma apresentação. Percebi que havia vontade e segurança na fala dos conhecidos moradores do asilo. Surgiram em mim novas esperanças. A conversa foi se desenvolvendo. Histórias de amor, solidão, infância, abandono foram expostas e todos reagiam a esses relatos. Cada história foi valorizada e, portanto, cada indivíduo foi visto como importante.

Fato interessante é que nesses encontros havia a constante presença da música. Sozinha ou acompanhada da dança ela sempre era lembrada, e até foi levada às reuniões para descontrair o pessoal. Enfim eu havia reencontrado a música no asilo, mas dessa vez a motivação não era egoísta. Queria vive-la com os outros, vê-la de outras formas, senti-la de maneira que, antes (sozinho), não poderia fazer.

Encontrei no Asylo dos Pobres do Rio Grande uma caixa de música, onde as notas – no caso a valiosa vivência com os idosos- está, ao menos por hora, contida em um local. Espero poder libertar essa música e deixa-la embalar outras pessoas, assim como fez comigo, sempre lembrando de quem a compôs.

Abraço, 

Jean



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