Uma tarde para guardar debaixo de 7 chaves




   Era uma tarde ensolarada de terça-feira. Cheguei. Procurei-a, e lá estava ela, cabelos grisalhos, perambulando de um lado para outro em sua cadeira de rodas, inquieta, incompreendida, com pressa, repetindo que estava com frio, reclamando em voz baixa.
     Aproximei-me ansiosa, tinha uma surpresa para ela. Naquele dia, aquela senhora tão exigente era um motivo muito especial para eu estar ali.
     Ao me ver, no entanto, eu fui apenas mais uma no seu caminho, a quem falou que estava com frio, resmungou algo que não consegui entender, e já ia desviando seu rumo. Mas percebeu que eu continuava ali, olhando-a, e então virou-se novamente para mim, como que estranhando meu comportamento. Pelo visto há muito não haviam olhado realmente para ela...
     Em pouco tempo de conversa entreguei a ela o que tinha trazido: um pacotinho transparente com um doce laranja dentro. Era o doce de abóbora que quisera na semana anterior e não encontrara alguém que lhe satisfizesse a vontade. Ah como seus olhos brilharam! Aquele rosto antes tão magoado transformara-se em tão pouco tempo. Sorria, mas não sorria só com os lábios, e sim também com os olhos e com a alma. Agradeceu-me de uma forma que lembrarei por toda minha vida, e abriu apressada o pacote que envolvia seu tão desejado doce. Segurava aquilo que tanto quisera com as duas mãos, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo, saboreava, e sorria.
     Confesso que aquela senhora antes tão sozinha por ali, foi capaz de provocar em mim um sentimento indescritível, um misto de grande felicidade e esperança. Éramos então como duas crianças que acabaram de ganhar um grande presente, felizes, trocando olhares de agradecimento mútuo.
     Após um tempo apreciando aquele momento, ela disse, olhando-me profundamente, que gostara muito de mim, queria saber sobre minha vida, apresentar-me toda sua família, ter-me por perto, e disse que queria me ajudar em tudo que eu precisasse. Toda a dureza transformara-se em tamanha doçura, agora sentia que havia alguém com ela, esquecera suas reclamações, era outra pessoa.
     Contou-me sobre sua vida, abriu-se como uma criança que conta seus segredos. Sinceramente, hoje penso até que ponto as histórias que me contara aconteceram realmente ou foram fruto das marcas que sua doença lhe trouxera, mas naquele momento aquilo não importava, só conseguia me encantar com a beleza daquela experiência, de poder compartilhar com ela tudo aquilo, de ter representado alguém com quem ela pudesse se abrir, de ter satisfeito um desejo que lhe era tão importante...
     Após um tempo, no entanto, como que passando o seu tempo, ela fora voltando ao seu mundo, aquele que ia além do que eu conseguia ir, voltando a sentir o frio que não passava, voltando a viver no passado que ela não conseguia separar do presente. E eu fui deixando-a ir. Não sabia, e me pergunto ainda hoje, como seria viver esse mundo paralelo? Será que ele é tal qual fora seu passado? Ou talvez contenha desejos do passado que não pôde realizar e que agora se concretizam? Será uma maneira de refugiar-se do presente? Até que ponto é real? Para ela o é... São perguntas que me faço e que talvez nunca saberei responder. E por não saber simplesmente fiquei ali e deixei-la ir e vivê-lo.
     E assim vivi um dos momentos mais incríveis de minha vida, ao lado de uma joia quase esquecida, de uma rica senhora... Rica em histórias, em doçura e em capacidade de apreciar coisas simples. Espero que, ao contrário da memória que se vai, o sentimento que nossa experiência nos trouxe não se esvaia, que seja guardado debaixo de sete chaves e dentro do coração...

Um abraço carinhoso
Jéssica


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