A Construção Conjunta do Tratamento Necessário

Esta Semana o texto para discussão da Liga de Educação em Saúde é este texto do Eymard Mourão Vasconcelos. Nos encontramos quinta-feira dia 13 de junho às 20hs no Hospital Universitário. 

A Construção Conjunta do Tratamento Necessário
 
O atendimento médico aborda pacientes que, por serem marcados por uma cultura e por limitações materiais, não se modelam passivamente aos tratamentos prescritos. Assim medicar é também um ato educativo e de negociação com os saberes e práticas populares de saúde. Os médicos tem enfrentado esta questão pelo que chamam de o "bom senso médico", aprendido pela imitação dos mestres e pelo processo intuitivo de erros e acertos. Mas há ciências que estudam aspectos dessa questão. Este artigo é uma tentataiva de abordar o tema de uma forma didática a partir do instrumental da educação popular. Propõe uma metodologia de relação médico-paciente voltada para a construção conjunta do tratamento necessário.

1-Introdução: O tratamento passa pela liberdade e pela cultura do paciente

Medicar é muito mais que escolher e prescrever os melhores cuidados e medicamentos. Tratamos pessoas que, por serem marcadas por uma cultura e por limitações materiais, não se modelam passivamente às nossas orientações. Os pacientes não são quadros em branco onde podemos imprimir nossas conclusões e prescrições pois já trazem para o atendimento médico suas próprias visões de seus problemas e uma série de outras práticas alternativas de cura. São visões e práticas normalmente não narradas durante a consulta, principalmente se o paciente é de nível socioeconômico baixo. Estamos em uma sociedade onde o saber dos doutores é dominante, tornando ilegítimos os outros saberes e portanto motivo de vergonha. Assim, medicar é também um jogo de convencimento e negociação do nosso diagnóstico e prescrição com estes outros saberes e práticas, onde a conduta resultante será um híbrido, fruto da reinterpretação pelo paciente, cidadão livre.

Quais são esses saberes e práticas populares? Esta é uma pergunta com a qual os médicos, em geral, não se preocupam conscientemente, apesar de irem desenvolvendo, pela intuição e imitação dos mestres, uma série de estratégias de relação com essas práticas e percepções populares. Denominam essas posturas não refletidas de lidar com a cultura do paciente de "bom senso médico". São elas que explicam o sucesso de muitos médicos (nem sempre aqueles com melhor capacitação científica) com os seus pacientes. Esse sucesso médico é difícil de ser avaliado pelo próprio clínico, que normalmente continua trabalhando apenas com os pacientes que se integraram às suas condutas. Os insatisfeitos, em geral, não voltam. Se voltam, não costumam falar de suas insatisfações ou das adaptações realizadas.

Por que um aspecto tão central na prática médica deve continuar sendo enfrentado intuitivamente? Se buscamos a bibliografia mais atualizada para decidir qual antibiótico usar em um caso de abscesso pulmonar, por que não buscar também bibliografia atualizada para enfrentar esta questão? Há ciências que cuidam de problemas como esse: a antropologia, a sociologia e a educação. Talvez, nós profissionais de saúde tenhamos um pouco de dificuldade em lidar com a natureza aparentemente mais imprecisa das ciências sociais. Mas a gravidade dos problemas de saúde com que lidamos está a exigir mais esse esforço científico. A antropologia, que se estruturou como ciência a partir do estudo de povos considerados exóticos e primitivos, passou também, a partir de meados do século, a utilizar o seu método para compreensão da dinâmica cultural dos diversos grupos sociais da civilização ocidental (Guimarães, 1990). A educação, antes voltada basicamente para as questões da escola, passa a refletir também sobre o significado das relações educativas que acontecem nas diversas instâncias e práticas da vida social.

A medicina tem concentrado seus esforços no enfrentamento de doenças isoladas através do desenvolvimento de técnicas medicamentosas, cirúrgicas e eletrônicas que atuam no processo de adoecimento e de cura ao nível do corpo biológico. O esforço médico, em geral, corre paralelo, dessincronizado e até mesmo em oposição ao esforço e à busca que a população vem fazendo para enfrentar seus problemas de saúde. A proliferação das chamadas medicinas alternativas (ou paralelas) é um sinal da crescente percepção pela sociedade dos limites da medicina. Com a multiplicação dos Centros de Saúde a partir da implantação do Sistema Único de Saúde, esta questão tornou-se fundamental. Antes, a grande distância entre os hospitais e ambulatórios centrais e o cotidiano da vida popular tornava impossível uma interferência mais significativa dos profissionais nesse nível. Mas os Serviços de Atenção Primária à Saúde representam uma inovação institucional justamente porque possibilitam essa aproximação. A experiência internacional, como é o caso cubano, tem demonstrado que a sua surpreendente eficiência se dá na medida em que o serviço consegue se inserir profundamente na dinâmica social local.

2- As diferentes práticas populares em saúde.

Como são estas práticas populares de saúde? Antes de mais nada, é preciso chamar atenção para a heterogeneidade das classes populares. As mudanças da economia tem levado a uma intensa fragmentação e diferenciação da população. Nomes genéricos como "os pobres", "a comunidade", "a classe trabalhadora" ou "o povo" tendem a esconder os diferentes modos de vida e de pensamento existentes na população. Mesmo quando aparenta ter um grande grau de homogeneidade, como é o caso de uma favela, na verdade é composta de grupos sociais muito diferentes entre si, tanto do ponto de vista material como cultural (proletários, empregados domésticos, pequenos comerciantes, traficantes de drogas, mendigos, líderes, recém migrados rurais, famílias antigas e tradicionais, doentes mentais, artistas, etc.). O médico, se quer se aproximar da cultura de seu paciente, precisa estar atento para esta diferenciação: de onde provém a renda da família, a que grupo religioso ou racial pertence, é ligado a algum movimento social?

Podemos didaticamente dividir as práticas populares de saúde segundo a sua localização social:

a-práticas familiares ou caseiras;

b-práticas executadas por pessoas que delas auferem renda ou distinção social (raizeiros, rezadeiras e pais-de-santo);

c-práticas dos movimentos sociais locais.

 

a- Práticas familiares ou caseiras de saúde.

O serviço de saúde tende a tratar cada paciente como se fosse um indivíduo solto na sociedade. No entanto, ele, ao adoecer, procura discutir seu problema com amigos e familiares, delineando uma visão sobre o mesmo. Na maioria das vezes são tentadas medidas terapêuticas caseiras. O adoecimento traz uma revalorização da vida familiar e dos laços de solidariedade dos amigos. As orientações e os cuidados prescritos pelo médico se misturam com as do grupo familiar. O tratamento depende do envolvimento de toda essa rede. Por isto a abordagem médica precisa se alargar para o grupo familiar do paciente, principalmente diante dos casos mais complexos. Mas ao perceber uma certa crítica ou desconfiança familiar diante de sua prescrição, o médico tende a assumir uma posição de desvalorização dos vínculos que unem esta rede de apoio, tão fundamental para a recuperação do paciente e que, muitas vezes, está fragilizada e em crise pela baixa auto-estima e pela opressão vivida por seus membros. Colaborando com esta postura, existe um certo preconceito das categorias profissionais mais intelectualizadas contra a família, vista como instância de coerção à individualidade e a liberdade pessoal. Mas, diferentemente dos grupos sociais mais abastados que podem comprar no mercado muitos dos serviços tradicionalmente fornecidos pela família, no meio popular estes apoios caseiros são fundamentais.

As famílias populares podem apresentar-se de formas bastante diferenciadas da família nuclear (pai, mãe e filhos), considerada como modelo de normalidade. É crescente o número de famílias sem a presença do pai ou onde o homem é pai de apenas alguns dos filhos. Costumam ser julgadas como desestruturadas, justificando para o médico uma não implementação de sua prescrição. São comuns as famílias extensas, onde moram na mesma minúscula casa avós, tios, amigos recém chegados do interior, irmãos casados, mães solteiras, etc.. É uma situação, muitas vezes, classificada como promiscuidade. Existem ainda famílias vivendo situações de crise (alcoolismo, miséria extrema, conflitos conjugais graves, doença mental, grande número de filhos pequenos, desemprego, conflito com o crime organizado, etc.) que não conseguem dispensar os cuidados básicos aos seus membros. Vistas como acomodadas, tendem a ser desprezadas pelos serviços por não dar conta de se enquadrarem na sua rotina (horário de marcação de consultas, execução dos exames laboratoriais, postura atenciosa nos atendimentos e obediência detalhada da prescrição). Neste momento, o setor saúde segrega justamente os mais carentes, atuando de forma semelhante à instituição escolar que os marginaliza através da repetência e evasão escolar. Ao contrário de desprezo e humilhação, essas famílias em situação de risco e com membros (crianças, idosos doentes e deficientes) sem autonomia de buscarem por conta própria seus direitos de cidadãos, requerem um acompanhamento diferenciado. Neste sentido, tem sido uma das prioridades da UNICEF -Fundo das Nações Unidas para a Infância- o apoio da valorização da abordagem à família nas práticas de saúde (Kaloustian, 1994).

Historicamente, tem cabido às mulheres nas várias sociedades a maior responsabilidade com as tarefas domésticas e os cuidados das crianças. Responsável pelo dia-a-dia do lar, é a dona de casa quem convive mais de perto com as precárias condições de vida da família popular, mesmo quando é forçada a trabalhar fora para complementar a renda familiar. É ela quem coordena as iniciativas para se virar com os mínimos recursos existentes, tentando aproveitá-los ao máximo para manter um nível de saúde suficiente para a sobrevivência de todos.

É a mulher quem assume os cuidados do recém-nascido e das crianças menores (higiene, alimentação, apoio psicológico e proteção dos acidentes). É a principal responsável pela manutenção da limpeza da casa e do cuidado com o vestuário. Assume o tratamento caseiro das doenças mais simples, seja através do uso de plantas medicinais, seja através de medicamentos indicados anteriormente por profissionais de saúde e cujo uso foi aprendido. Nas doenças mais graves é a dona de casa quem leva as crianças ao médico, enfrenta filas e a burocracia dos serviços, carrega o doente nos ônibus ou no colo de um serviço para outro, aplica os medicamentos e cuidados prescritos, vigia o surgimento de sintomas e sinais de complicações clínicas, controla a vacinação e outros cuidados preventivos. Enfrenta o descaso do Estado para com os doentes das famílias trabalhadoras, brigando para conseguir fichas, dando "jeitinhos" para ter acesso a serviços especiais, denunciando e reclamando quando é grosseiramente injustiçada, implorando consideração, etc.. Também é a mulher da classe trabalhadora quem toma as maiores iniciativas para superar os conflitos entre os filhos, com o marido e com os vizinhos, tentando manter o equilíbrio psicológico. A educação, a formação de hábitos, o acompanhamento na escola e a orientação do lazer dos filhos são outras tarefas coordenadas pela mulher. Ainda administra a utilização dos alimentos e materiais de consumo disponíveis, faz trocas e empréstimos com a vizinhança e controla as dívidas nos armazéns para que a carência não chegue a graus extremos. Por causa desse seu maior envolvimento com as questões de saúde do lar, as mulheres são as que mais participam das organizações comunitárias e dos grupos reivindicativos locais por melhores condições de vida e saúde.

Essas mulheres são, portanto, detentoras de um significativo saber e uma rica prática em saúde que precisam ser considerados pelos profissionais. Elas (cuidando de si ou trazendo parentes) são as principais presenças populares nos serviços de saúde. Muitas vezes, a aparente apatia e desinteresse que demonstram é sinal de resistência e insatisfação ao modo como são tratadas: uma massa uniforme, carente, sem experiência nas questões de saúde e portanto necessitando de ser doutrinada (Dias, 1987).

Os cuidados caseiros narrados durante a consulta devem ser avaliados pelo clínico não apenas por seu impacto direto na biologia do corpo doente, mas também por seu significado na totalidade da vida. Assim, o agasalhar o marido gripado ou o lhe preparar gemada quente é também um sinal de carinho e acolhimento, fundamentais na sua recuperação. É neste sentido que se diz que a medicina popular não sofre da separação, que marca a alopatia, entre o que é biológico, espiritual e psicológico. Com chás, orações, alimentos especiais e carinho, a experiência de adoecer é superada em dimensões que vão além da recomposição do órgão afetado: pode significar o fortalecimento dos laços de solidariedade e gratidão e do sentimento de segurança e felicidade do paciente. Essas práticas, carregadas de dimensões religiosas e atitudes de acolhimento, ajudam o paciente e sua família, em crise pela doença, a reelaborar a experiência de sofrimento vivenciada, reorganizando suas posturas diante da vida. A dor se alivia e surge um novo ânimo para enfrentá-la, quando se percebe seu sentido na história do grupo a que se pertence.

O crescente reconhecimento social que vêm alcançando muitas das chamadas medicinas alternativas (homeopatia, acupuntura, naturopatia, etc.), que funcionam segundo modelos explicativos fora da lógica científica da nossa medicina, vem tornando cada vez mais evidente o que os filósofos da ciência estão, há algum tempo, buscando ressaltar: o método científico, o mesmo que construiu a fisiopatologia e terapêutica médica, é apenas um dos caminhos possíveis de conhecer e intervir no processo de adoecimento e de cura. O mistério da vida humana extrapola, em muito, o conhecimento científico. É preciso estar aberto e respeitar outras formas de abordagem dos problemas de saúde, entre as quais, a medicina popular. Nós, brasileiros, somos herdeiros de um saber em saúde, acumulado durante milênios, de geração em geração, que pode contar com a flora e a fauna mais diversificadas do planeta e que só ultimamente começa a merecer algum estudo científico. Muitos médicos que conviveram de perto com o arsenal da medicina popular ficaram fascinados com suas curas "inexplicáveis". Mas são experiências fragmentadas e não sistematizadas. É preciso portanto superar a arrogância de muitos profissionais de saúde diante de considerações trazidas por populares (muitas vezes descalços ou com olhar envergonhado) sobre os seus problemas de saúde.

b- Práticas de saúde executadas por raizeiros, rezadeiras e pais-de-santo.

A medicina popular é um conhecimento difusamente presente na maioria das famílias, baseado na utilização de plantas medicinais, cuidados caseiros e orações. Em cada lugar sempre há os mais entendidos, mas são pessoas que exercem sua atividade profissional habitual e, de vez em quando, orientam alguém que os procura. Não são muitos os locais onde essas pessoas mais entendidas se dedicam essencialmente ao tratamento de doentes, passando, então, a aceitar presentes e pequenas retribuições. São distinguidos como sábios populares. Dificilmente esta medicina popular chega a ser encarada como uma atividade econômica rentável, pois é exercida com grande motivação religiosa. Acreditam que seu saber é um presente de Deus que não pode ser comercializado. Dependendo da ênfase dada às orações na abordagem dos casos, são chamados de raizeiros ou rezadeiras. É através destes sábios populares que a medicina popular deixa de ser um conjunto fragmentado de práticas de cura para se tornar um sistema complexo e articulado de conhecimentos sobre a vida, a doença e a morte.

Há um estudo muito interessante de um raizeiro nordestino, baseado no seu depoimento (Tiago, 1984) que ressalta justamente a dimensão espiritual dessa prática de saúde, normalmente não explicitada nas inúmeras publicações sobre o tema, que tendem a ser apenas uma descrição das plantas medicinais utilizadas. Com a urbanização e a expansão da medicina oficial, essa medicina popular vem se tornando imprecisa em muitas regiões: há muita confusão em relação a identificação das plantas, a dose a ser utilizada e sobre as melhores abordagens.

Nas cidades maiores há os vendedores de ervas e plantas medicinais em barracas nas feiras e nas ruas. Apesar de não terem, em geral, um conhecimento muito extenso, eles também fazem consultas e prescrevem. Por serem muito mais comerciantes do que sábios populares, tendem a exercer uma medicina popular muito simplificada: para cada queixa, uma planta e uma venda. As dimensões espirituais e de acolhimento psicológico, tão fortes na medicina popular, são deixadas de lado.

É baixa a confiabilidade da identificação das plantas que vendem. Nos últimos anos esse comércio vem se sofisticando, com a organização de indústrias e farmácias. A medicina popular pode, portanto, se apresentar de forma bastante diversificada. Ao mesmo tempo que é preciso respeitá-la, é necessário saber de suas contradições internas. Muitos pacientes chegam usando remédios caseiros ou perguntando sobre a possibilidade de usá-los. O médico, mesmo não tendo uma opinião acabada sobre cada um desses tratamentos, pode criar um espaço de aprofundamento, na medida em que, manifestando o seu respeito e interesse, explicita o seu pouco conhecimento sobre os recursos da medicina popular e expõe o tratamento que estudou e conhece, com os seus limites e as suas vantagens. O diálogo pode continuar se o paciente coloca suas dúvidas, suas experiências anteriores e as circunstâncias de sua vida que facilitam ou atrapalham cada um dos tipos de tratamento e se o profissional, com o seu conhecimento, opina sobre cada uma daquelas colocações.

Mesmo que o clínico não tenha conhecimento sobre o efeito médico de determinada planta, ele tem informações sobre a maneira de diagnosticar e os mecanismos biológicos de cada doença, que podem ajudar a redefinir o seu uso. Tendo poucas informações sobre o efeito constipante do chá de broto de goiabeira na diarréia, tem muito o que opinar sobre o seu uso na medida em que essas diarréias se curam pelos próprios mecanismos de defesa do organismo e que as drogas constipantes podem prejudicar estes mecanismos. Ele pode contribuir para o questionamento do uso de determinada planta para o tratamento de "bronquite", na medida em que sabe, que o que é chamado de bronquite engloba uma série de doenças diferentes, com diferentes causas e, portanto, exigindo diferentes tratamentos.

Em áreas onde é forte a cultura negra e estão presentes o candomblé e a umbanda, o médico está sempre se defrontando com os seus sistemas mágicos de cura, cuja compreensão exige um esforço muito grande. Enquanto os erveiros, de uma forma semelhante à medicina alopática, se voltam para a cura de doenças pré-definidas buscando nas plantas uma intervenção sobre órgãos afetados, os ritos terapêuticos afro-brasileiros atuam essencialmente ao nível do simbólico. Nos seus ritos, se procura retirar, não uma determinada doença, mas os maus fluidos que acompanham o doente e o fazem sofrer, buscando reorganizar as suas relações com o mundo sobrenatural e a sociedade. Os pais-de-santo utilizam também as plantas medicinais na lógica dos raizeiros em muitos casos, mas o que lhes é característico é a utilização de certos vegetais como instrumentos de seus rituais. É o caso da jurema (com seu efeito alucinógeno) e os ramos e folhas para as benzeções. Os pais e mães-de-santo procuram, através de rituais em que se entra em estado de transe, obter a intercessão dos espíritos para resolver as, por eles chamadas, "doenças espirituais". Neste sentido, é uma pratica de cura que se integra com a assistência médica oficial: muitas vezes os pais-de-santo encaminham para o médico o tratamento dos "problemas materiais". É usual ter pacientes se tratando simultaneamente nos dois sistemas de cura.

Pelo caráter exótico destes ritos, é comum os médicos assumirem uma postura de desprezo, sem buscar entender as narrativas dos pacientes que deles fazem uso. No entanto, estudos têm chamado a atenção para a eficácia desses rituais diante de problemas de saúde mental e de dimensões psicológicas das doenças orgânicas. Durante os ritos, o indivíduo em crise existencial vê seus conflitos, contradições, frustrações pessoais se rearticularem dentro de uma nova visão religiosa e global de sua vida, onde os seus males deixam de ser "uma fraqueza" ou "uma inferioridade" para se tornarem resultados de um jogo universal e que podem ser superados pela adesão ao culto, onde passa a encontrar um novo espaço de convivência social, muitas vezes com mais solidariedade e amizade. A partir desta experiência pode-se conseguir um progressivo reordenamento das relações familiares e comunitárias (Loyola, 1984). É um desafio para o médico, que também tem suas crenças e ritos, dialogar com uma outra crença tão diferente, mas que pode ser central no processo de cura de seu paciente.

c- Os movimentos comunitários de saúde

Principalmente a partir da década de 1970, os médicos que atuam junto às classes populares vêm se deparando com um novo e importante interlocutor: os movimentos sociais locais. São os grupos de mulheres, associações de moradores, núcleos locais de igrejas pentecostais, grupos de jovens, pastoral da criança, grupos de capoeira, comissões municipais ou locais de saúde, os vicentinos, pastoral da saúde, núcleos locais de partidos políticos, mobilizações em torno de determinada reivindicação, etc.. Em geral são formados de um número relativamente pequeno de participantes por grupo, têm formas coletivas de tomada de decisão e um distanciamento pequeno entre as lideranças e os demais participantes. Eles vêm transformando os problemas individuais de saúde em problemas coletivos enfrentados com reflexões e discussões, lutas políticas, criação de redes de solidariedade e manifestações culturais. Mesmo que muitos dos pacientes não pertençam a nenhum destes movimentos, sabem que a eles podem recorrer em caso de uma dificuldade maior e são atingidos por suas atividades culturais. Têm significado um importante espaço pedagógico na formação de pessoas conscientes de seus direitos e capazes de intervir no jogo social, levando assim a um alargamento das possibilidades de cada paciente enfrentar de forma mais intensa as raízes de seus problemas de saúde. Abrem, portanto, para o médico a possibilidade de uma abordagem mais ampla da doença que não se reduza à prescrição de um medicamento voltado para o órgão acometido, mas que busque também intervir nas condições sociais, ambientais e psicológicas de base.

Muitos profissionais assumem uma postura defensiva em relação a esses movimentos, vendo-os apenas como vigias e cobradores de seu trabalho. Por causa deste medo, não se aproximam e assim não percebem a usual receptividade e vontade de aliança. O envolvimento com esses grupos possibilita ao médico o acesso a importantes conhecimentos sobre a realidade local e, ao mesmo tempo, contar com novos aliados e recursos comunitários para o tratamento de diversos pacientes. Mas é importante buscar se relacionar com os movimentos comunitários sem se contrapor a sua autonomia. O título de doutor significa um poder simbólico que tem a força de calar vozes ou fazer das relações com o meio popular uma relação de subordinação.

3- Um método: a construção conjunta do tratamento necessário.

O modelo de consulta médica tradicional está centrado em uma busca acurada de informações (seja pela anamnese, seja pelo exame físico e laboratorial) que permitam uma sábia decisão do médico sobre o melhor tratamento para o problema apresentado. As tentativas de melhorar a relação com o paciente estão voltadas para a obtenção de dados mais abrangentes para uma melhor decisão terapêutica. Acontece que no atendimento ambulatorial, diferentemente da situação no hospital, onde é pequeno o controle do tratamento pelo paciente, o cuidado médico implementado passa necessariamente pela liberdade do doente e de sua família. A eficácia médica está subordinada à eficácia pedagógica da relação com o paciente e sua família. Na prática clínica, usualmente se recorre intuitivamente a estratégias educativas voltadas para o convencimento do paciente, ou seja, fazê-lo abandonar suas convicções anteriores sobre o problema e aceitar o diagnóstico e a conduta prescrita. Para isto, utiliza-se principalmente de posturas que ressaltam o poder e a legitimidade do saber do médico como falar com autoridade, firmeza e vestir-se de forma diferenciada.

A medicina diante de cada caso dispõe de múltiplos meios de investigação que fornecem diferentes graus de precisão ao diagnóstico e tem diferentes formas de tratamento que proporcionam níveis diversos de segurança e de cobertura. Acontece que cada um destes meios de investigação e tratamento tem diferentes custos (dinheiro, tempo, sofrimento, afastamento das atividades e esforço físico) para o paciente e para a sociedade. A decisão de quais recursos vão ser empregados em cada caso não é uma decisão puramente científica, mas baseada também em fatores subjetivos e sociais. Se lembrarmos ainda da constatação, já discutida, de que a medicina científica é apenas um dos caminhos (talvez o mais elaborado) de conhecimento e intervenção no processo de adoecimento e de cura e que os nossos pacientes trazem outras visões e saberes válidos (porque integrados em sua cultura e em sua realidade material de vida) e que não podem ser apagados durante a consulta, não resta outra alternativa que aprendermos a construir as condutas terapêuticas através do diálogo. De um lado, o paciente que conhece intensamente a realidade onde está inserida sua doença e carregado de crenças, saberes e estratégias de intervenção nesta realidade. De outro lado, o médico com conhecimentos científicos sobre o problema, mas também carregado de crenças próprias da cultura do grupo social de onde veio. Na medida em que cada um sabe dos seus limites, é possível estabelecer uma relação pedagógica onde o diálogo não é apenas uma estratégia de convencimento, mas a busca de uma terapêutica mais eficaz por estar inserida na cultura e nas condições materiais do paciente, como também por estar aberta a outras lógicas de abordagem da doença. Agindo dessa forma, se contribui tanto na formação de cidadãos mais capazes de gerirem sua saúde, como na superação dos

limites da medicina popular, que são muitos. O desafio é avançar neste sentido em serviços marcados pela precariedade e pelo excesso de demanda. É necessário um esforço teórico sistemático e muita abertura pessoal para compreensão das lógicas culturais do popular, aparentemente tão despropositadas. Este movimento é potencializado se o médico busca também formas de inserção e atuação fora do consultório (Vasconcelos, 1991).

A prática médica acontece cada vez menos em consultórios isolados e cada vez mais em instituições interligadas em amplas redes de assistência onde convivem grande número de profissionais. Este fato, se em muitos lugares tem resultado numa fragmentação e superespecialização do trabalho médico que aliena o profissional do significado global de seus atendimentos, em outros locais vem abrindo a possibilidade de se buscar uma nova ampliação da eficácia terapêutica através do trabalho interdisciplinar. A criação de espaços de interação entre os diferentes saberes e olhares trazidos por cada profissão para o enfrentamento de casos concretos, não é um processo espontâneo e fácil. Pelo contrário, é atravessado de conflitos e incompreensões, exigindo um trabalho persistente.

Para o médico que tradicionalmente assumiu a posição de comando e decisão nos serviços de saúde, esta reorganização de sua relação com os outros profissionais é particularmente difícil, mas fascinante se consegue superar as barreiras iniciais. Muito se tem falado na construção de uma Medicina Integral ou Holística. São muitas as medicinas alternativas se autodenominando de holísticas. Mas uma Medicina Integral não é uma nova tecnologia que tudo resolve. Também não significa a soma de todas as técnicas e todos os conhecimentos, pois o conhecimento de todos os fatos e o esgotamento de todos os aspectos é algo que o homem não atinge. A medicina é uma ciência e uma prática social marcada pela complexidade em que cada problema só pode ser compreendido pela inter-relação de múltiplos aspectos. Assim, a Medicina Integral não é algo já pronto, mas um processo em construção histórica. Não há dúvidas, no entanto, que, hoje, a interdisciplinaridade e a participação popular na construção de condutas médicas mais alargadas são chaves fundamentais no caminhar em direção a medicina Integral.

 

4 - Referências bibliográficas

-DIAS, Nelsina. Mulheres, sanitaristas de pés descalços. São Paulo: Hucitec, 1991.

-GUIMARAES, Alba Zaluar. Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.

-KALOUSTIAN, Sílvio. Família brasileira a base de tudo. Brasília: Cortez, 1994.

-LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e curandeiros. São Paulo: Difel, 1984.

-TIAGO, Zeca. Do fruto à raiz. Cadernos de educação popular. Petrópolis: Vozes, 1984.

-VASCONCELOS, Eymard. Educação popular nos serviços de saúde. São Paulo: Hucitec, 1991.

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