Relato de uma Vivente



por Izabela Barroso Ribeiro

O meu interesse pela Medicina de Família e Comunidade surgiu a partir de relatos de familiares que eram atendidos pela atenção básica no conforto de seus lares. Essa ideia me encantou e eu quis viver isso, mas dessa vez de uma perspectiva diferente. Não mais como acompanhante ou cliente, agora como um profissional da área da saúde.

As expectativas foram lá em cima, aquela ideia de que eu ia resolver as demandas de todos e que ninguém sairia insatisfeito. O medo da equipe da UBSF não me receber bem, por eu ser a estranha no ninho. Eu resolvi pendurar tudo isso no portão do Posto da Quintinha e entrar de coração e mente aberta. Foi a melhor decisão.

Essas duas semanas que passei por lá, do dia 18 de Janeiro ao dia 01 de Fevereiro de 2019, foram encantadoras, nasceu em mim a chama da família, com o passar dos dias aquele lugar tomava forma de casa e todo mundo que entrava era um familiar diferente, com sua história, sua necessidade. Acompanhei as atividades do NASF, consultas médicas, puericultura, vacinas, curativos, visitas domiciliares. Fiz um pouco de tudo.

Nos primeiros dias, muitos vovôs e vovós vinham, às vezes “só conversar”. Entre eles, uma senhorinha que mostrou para mim uma coisa diferente. Eu aprendi com ela sobre o LUTO, a atenção especial que uma pessoa com uma perda recente merece. Ela chegou por meio de um acolhimento e se abriu com a gente, como se estivesse na sala de casa. Admito que, no início, tive vontade de pegá-la no colo e fazer carinho até tudo aquilo passar, mas durante a consulta entendi e como entendi que “só conversar” para ela foi sinônimo de pegar forças. Ela restaurou as forças dela naquela manhã, conseguiu seguir com a vida e preencheu aquele espaço vazio, mesmo que um pouco, incrível perceber o quanto a escuta, um papel de pedido de exames e algumas palavras tem o poder de confortar os corações alheios.

Em algumas situações, para não dizer na maioria delas, a dor era o assunto. Uma questão bem delicada, algumas eram realmente dores e o paracetamol ia junto, porém tinha aquelas dores que se repetiam, iam e vinham, voltavam, com caras e cores diferentes. Para isso, consultas, grupo da dor coordenado pela fisioterapeuta do NASF, tanta coisa para ajudar, a dor seja ela realmente dor ou não, era ouvida, sentida e resolvida. O que me preocupou e bastante, é que descobri que nem sempre tem remédio para essa dor, às vezes, a equipe tirava do próprio bolso – onde muitas vezes nem se tinha o que tirar. Descobri que tem dor que não tem solução e é o carinho, o acolhimento, que faz essa dor diminuir e, finalmente, passar.
 
Percebi que é um ato de coragem dessas famílias abrir a casa delas para as equipes, abrir e compartilhar o íntimo do seu lar, nas visitas fomos recebidos com muito carinho, vimos a força daqueles que passaram por momentos difíceis, vimos pessoas acamadas e gente se recuperando, saindo da zona de conforto e querendo viver. Isso foi mais que renovador.

Vi o descaso, vi o abandono, vi muitos nãos, daqueles que deveriam garantir os recursos para que a atenção básica funcione adequadamente. E mesmo assim, eu não vi um problema sem solução, tudo foi superado com um sorriso no rosto, jogo de cintura e muita malemolência. Geladeira estragando, vacina perdida, remédio faltando, põe aqui, tira ali, entrega receita, refaz o requerimento, liga mais uma vez para secretaria, aperta aqui, solta ali e de repente, problema resolvido. Muita risada, cafezinho e o dever, cumprido.
 
E apesar dos pesares, eu me senti em casa e eu vou voltar, porque se tem uma coisa que essas pessoas, momentos e aprendizados me trouxeram foi muito crescimento pessoal, amor pelo próximo e persistência. A certeza de que o dia de amanhã vai ser melhor. De que demandas são demandas, cada um tem a sua e seu jeitinho de lidar com a doença, com a necessidade.


O meu muito obrigada à coordenação da Liga de Educação em Saúde, pela oportunidade de me tornar um vivente, obrigada também pelo suporte e pelas discussões que tivemos, foi tudo muito enriquecedor.

Comentários

Postagens mais visitadas