Relatório de Vivência - Bárbara Dandara



Realizei o estágio de vivência em saúde da família e comunidade durante os dias vinte um de janeiro à primeiro de fevereiro de dois mil e dezenove na unidade básica de saúde da família (UBSF) Dr. Carlos Roberto Riet Vargas, localizada no bairro Cidade de Águeda, no município de Rio Grande/RS. Durante esse período acompanhei a rotina dos profissionais da unidade, aprendi um pouco sobre a estratégia primária e conheci a história de alguns usuários da UBSF.

A unidade atua em duas microáreas: a nove e a trinta e dois que corresponde, respectivamente, a Cidade de Águeda, e bairro Cohab IV/ + condomínio champagnat. A equipe se organiza em dois grupos de atuação, que contém: dois médicos, duas enfermeiras, duas técnicas de enfermagem, um dentista, uma auxiliar de saúde bucal e um grupo de agentes comunitários de saúde (ACS). Embora ambas as comunidades necessitam dessa atenção à saúde, quando observado fica nítido uma maior vulnerabilidade socioeconômica da comunidade da área nove. Caberia referir que, essa maior fragilidade seria resquício da forma precária como essa comunidade foi realocada naquele espaço físico.

Na companhia das ACS realizei duas visitas domiciliares que, me proporcionaram conhecer a comunidade por trás dos muros da UBSF. A inserção dentro do bairro  me permitiu completar as lacunas do processo de adoecimento. Na visita a área nove observei uma realidade de privação de recursos econômicos e sociais, que acarretam em uma população mais vulnerável ao processo de adoecimento. A escassez de recursos cria novos parâmetros de vida,  que não necessariamente priorizam os hábitos de saúde.

Durante as duas semanas, acompanhei o trabalho de todos os servidores da unidade, conheci algumas das particularidades do serviço de cada profissional e observei a forma mais pessoal que os profissionais interagem com os usuários. Em decorrência da inserção da estratégia dentro da comunidade é indiscutível a importância da relação de confiança entre o trabalhador e a população. É notório que, essa relação mais íntima é um dos pontos chave para o sucesso do trabalho das UBSF e que essa subjetividade é criada desde o  “Bom dia!” da atendente até o “O que o senhor está sentindo ,hoje?” do médico no consultório.

Desde o primeiro dia participei de forma ativa da rotina de atendimentos da UBSF, realizei consultas individuais, nas quais pude observar que a principal ferramenta de um médico é a escuta atenciosa, pois, é esta que revela os principais problemas do indivíduo, garante conforto e possibilita a criação do vínculo médico-paciente. O adoecimento atinge a pessoa no seu sentido mais global, pois, uma dor física pode refletir no âmbito emocional, espiritual e social do ser humano, logo quando nos deparamos com um queixa é necessário ter um olhar diferenciado para compreender, que nem toda a queixa principal é o real problema.

Caberia contar a história de D. F. A, 27 anos, casada, 2 filhos, que procurou a unidade de saúde pela primeira vez por sentir intensa cefaleia há 5 meses. Aquela seria a terceira consulta de acolhimento da manhã e a minha primeira individual do dia. Assim como manda o figurino, escrevi no prontuário a lista de problemas e iniciei o método SOAP. Alguns minutos após iniciar os questionamentos sobre a cefaleia a paciente começa a tremer, desaba em lágrimas e refere: “Moça na verdade o meu problema é esse. Toda hora eu choro, de nervoso nem trabalhar eu vou , minhas filhas não gostam mais de mim e eu olho no espelho e só tenho vontade de sumir.” Naquele momento, enquanto a paciente chorava, todo tipo de pensamento passou pela minha cabeça, inclusive o de sair correndo. Porém conversei com a mesma, até que ela conseguisse se reestabelecer. Após alguns minutos chamei a médica, que além de assumir a consulta, trabalhou de forma empática os problemas trazidos até o consultório. De forma saudável é necessário que o consultório seja um espaço de diálogo, onde o paciente se sinta à vontade para compartilhar seus problemas reais.

Além disso, acompanhei três grandes médicas no dia-a-dia, que compartilharam bem mais que técnicas comigo. Na verdade, naquele pouco tempo consegui reafirmar a importância da paixão pelo cuidar e aprendi que uma consulta boa não é aquela que acerta o nome da doença em menos de 10 minutos, mas sim a que consegue ver o problema por um todo.

Durante a vivência, obtive a oportunidade de acompanhar as técnicas de enfermagem da unidade, grandes profissionais, que trabalham incansavelmente para realizar o melhor serviço possível. Acredito que lugares são reflexo das pessoas  que o constroem e que a alma da UBSF da Cidade de Águeda  está no serviço dessas profissionais. Além de todos os saberes práticos, conheci a história de vida dessas profissionais, que estão intimamente relacionadas com a história da saúde do município de Rio Grande.

Acompanhei uma única reunião do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), composto por um psicólogo, nutricionista, assistente social e fisioterapeuta,  esse grupo desenvolve ações que englobam outros parâmetros de saúde, que o profissional da estratégia de saúde da família não consegue contemplar no seu atendimento. Essas experiências de trabalho coletivo viabilizam um olhar mais completo do indivíduo, trabalhando assim o contexto de saúde e doença por um parâmetro mais completo.

1.   O CONTEXTO SOCIAL DO PROCESSO DE CURA

O contexto de saúde e doença que na maioria das vezes é segmentado, principalmente dentro do contexto hospitalar, na Ubsf torna-se completo mediante uma realidade em que o social é tão relevante quanto a potência da medicação. Em um país como o Brasil em que a desigualdade social ainda norteia as relações humanas, ao ponto que, uma parcela majoritária da população é excluída do processo de construção social é fundamental que a saúde articule propostas para contemplar esses indivíduos.

O adoecimento é um processo multifatorial, que precisa ser tratado no seu sentido mais amplo, à medida que não basta curar a doença é necessário tratar o doente também. Durante uma consulta de acolhimento a importância de visualizar o indivíduo na sua totalidade fica nítido durante a fala de M. S. P, 21 anos , 3 filhos , que foi ao UBSF  por que seu filho  de 7  anos continuava piorando , a mesma dizia : "Doutora , ele ta cada dia pior. Eu sei que a senhora me deu a receita, mas não tive como ir no centro buscar. O meu marido desde que perdeu emprego,  só dorme. Só eu trabalho e se eu faltar, eu perco o serviço." Nesses parâmetros fica evidente que a conduta precisa pensar em outros quesitos da vida do paciente, pois não basta entender a doença é fundamental compreender o processo de adoecimento.

A educação médica precisa se adequar a diversidade da sociedade, que se encontra. É quase como uma exigência popular, que o processo de formação acadêmica forme profissionais capazes de prestar atenção integral e humanizada a pessoa, que tome decisões baseadas não apenas nos sinais e sintomas, mas que também avalie o seu contexto socioeconômico. Nosso processo educacional é majoritariamente baseado em critério arcaicos do ser humano compartimentado em especialidades específicas, que pouco dialogam entre si. Contudo, a meta da faculdade deveria ser formar profissionais capazes de interagir com equipes multiprofissionais, com capacidade de trabalhar as problemáticas sociais , subjetivas e biológicas do  processo de saúde e doença.

O trabalho das equipes multidisciplinares dentro da UBSF permite um olhar coletivo do indivíduo, que possibilita uma visão mais coerente da realidade do paciente. Esse olhar global do objeto em questão, auxilia caracterizar os limites e possibilidades de cada campo de estudo, visando um melhor atendimento . Durante o período da Vivência observei, principalmente, pela fala dos profissionais o quão benéfico é esse tipo de manejo de saúde. Nas reuniões de equipe era explícito que toda a informação acrescentada era positiva para a construção do perfil do usuário da UBSF.

 2.    OS SABERES POPULARES DENTRO DA UBSF

O conhecimento popular está no dia-dia dos profissionais da estratégia de família. Em um país pluricultural, que apresenta grupos com características específicas e formas próprias de se relacionar com o mundo, a estratégia de saúde da família encontra-se inserida nesse contexto cultural e precisa de forma objetiva trabalhar junto com as especificidades de cada grupo.

Os saberes populares, transmitidos pela oralidade, fazem parte da construção das comunidades periféricas. As experiências de seus antepassados são compartilhadas com os mais novos, no intuito de preservar as tradições e aprimorar costumes. Compreender a existência e importância dessas crenças populares é se enxergar como parte dessa comunidade e se aproximar do indivíduo.

 A população atendida pela UBSF  tem o hábito de manejar o processo de saúde e doença por ambas as vertentes, a maioria dos usuários utilizam tanto os recursos naturais, como chás e rezas, quanto a própria medicação e orientação do médico ou enfermeiro da unidade de saúde. No âmbito do cuidado, conhecer as crenças acumuladas pelo paciente e sua compreensão do processo de adoecimento permite escolher qual a melhor conduta para cada indivíduo, pois, as suas experiências acumuladas refletem na adesão ao tratamento .

O conhecimento empírico, na realidade apresenta vantagens e desvantagens. As crenças/religiões, as práticas étnico culturais e as vivências dentro da comunidade permitem ao paciente e ao profissional uma visão única do manejo de saúde. Conheci histórias que tiveram  a religião, por exemplo, como impulsionador do processo de cura e ao mesmo tempo pessoas que tiveram a fé como obstáculo para seguir o tratamento.  Caberia lembrar a fala de uma paciente, que luta contra o Ca de mama há 2 anos e durante uma conversa disse: "Todos os dias foram terríveis, resisti apenas por ter Deus e meus filhos comigo." Nem sempre é possível ter a ciência e a religião caminhando juntas, mas quando executável é importante que o profissional veja essa interação de forma positiva.

Acredito que a atenção a saúde ainda está longe de, na prática, trabalhar junto com os saberes tradicionais porém é irrefutável o quão benéfico para a saúde seria se apropriar disso. Compartilhando os saberes, a promoção da saúde se daria de forma mais completa e a subjetividade humana seria mais bem compreendida.

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