História de vivências na UBSF da Ilha dos Marinheiros
Luísa do Couto Sponchiado

Comecei o estágio de vivências sem muitas expectativas, mas o primeiro dia estava lá para mudar isso de cara. No meu primeiro dia encontrei certa resistência por parte do enfermeiro chefe da equipe, mas nada que uma boa conversa não resolvesse... Olhares desconfiados da equipe e da comunidade desde o momento em que desci do carro. Imagino que pensaram: “Quem será essa estranha?” E assim começamos...
No primeiro dia fui no carro da prefeitura, literalmente comendo poeira e vazando gasolina do centro a ilha, conheci a unidade, toda a equipe, e não menos importante: alecrim e chocolate os mascotes de quatro patas da unidade. Recebi recomendações de não cozinhar ou beber água da torneira, sequer lavar as mãos. A fonte de água da unidade foi construída próxima a fossa, contaminando a água... Falhas de planejamento e engenharia no Brasil.
Ainda neste dia conversei muito sobre medicina com minha preceptora Rita, a qual antes de cada consulta me falava um pouco do que provavelmente eu encontraria dentro da sala de atendimento. Ela é uma grande amante da arte do cuidar e da medicina como um todo, está a praticamente 10 anos atuando na UBSF da Ilha dos Marinheiros. Ela se tornou uma grande contadora de histórias, se inserindo na comunidade de maneira tão primorosa que eu nunca tinha visto antes. Ela mergulhou nos saberes da comunidade, no dia a dia de trabalho dos moradores da ilha e procurou conhecer suas crenças, trazendo isso para cada atendimento, unindo o acadêmico com o popular, gerando uma adesão invejável. Eu diria que ela é entendedora de medicina, saberes e almas, um exemplo de profissional a ser seguido, mesmo em meio sua agitação constante;
Mas isso ainda não foi tudo...
No meu primeiro dia entrou no consultório uma senhora de cerca de 70 anos, pele judiada pelos anos de trabalho no sol, afinal ela é a provedora da casa. A paciente entrou com um olhar abatido, cabisbaixa, queixando-se de dores em várias partes do corpo, entrou falando daquela dor doída, sabe?  Disse-me que queria algo para isso e renovar a receita dos remédios da hipertensão, “dos nervos” e do diabetes. Previamente, por ler o prontuário e conversar com a médica responsável, eu sabia que ela passava por sérios problemas com o marido, coisas que não consigo descrever em palavras, podendo resumir apenas que naquele momento na minha frente tinha uma mulher forte e guerreira.
Mas como se não bastasse a história ainda não estava completa, ao longo da consulta percebi que tais dores tinham várias razões, iam além do serviço doméstico ou dos problemas com o marido, se tratava também de um coração de mãe apertado, que sofre e se culpa pelas dependências químicas do filho, por não conseguir se cuidar como gostaria, ela estava se sentido desleixada no auto-cuidado e também se culpava por todas as coisas que aconteciam em casa. Conversamos muito, aos poucos ela foi contando um pedaço de sua história, transbordando em lágrimas. E dentro de mim aquela inquietude: “o que posso fazer para ajudar/aliviar?”.
Eram tantas as demandas e eu só a veria uma única vez, comecei a contar histórias enquanto renovava a receita, consegui arrancar alguns sorrisos ao longo da consulta, falei da importância da atividade física e a convidei para participar do projeto Vida Ativa, dei a ela os horários, conversamos sobre o marido e o filho, sobre as belezas da ilha, sobre as dores, exercícios de alongamento, coisas que ela poderia fazer em casa para ajudar, incentivei ela a ir ao passeio com as amigas no dia seguinte. A consulta terminou, repassei o caso para preceptora, fizemos as condutas e ao ir embora ela agradeceu e me pediu meio sem graça: “posso te dar um abraço?”. Aceitei e retribui com um abraço sincero e naquele momento percebi que uma escuta atenta, empatia e doses de boas conversas por vezes é o melhor remédio.
No segundo dia de vivências tive a oportunidade de realizar a minha primeira sutura, um senhor o qual eu havia atendido no dia anterior. Ele teve um acidente de trabalho, escapou o facão, fazendo um ferimento corto - contuso na perna, resolvido com os três pontos que eu nunca irei esquecer na minha vida. Esse foi um dia extremamente movimentado na unidade com muitas intercorrências e consultas, mas uma em especial me marcou muito. Um adolescente de 17 anos, neto de uma das benzedeiras mais conhecidas da ilha veio consultar com uma alergia intensa em ambas as pálpebras, de forma que não conseguia abrir direito o olho direito por conta do edema local. Veio contando ter tido contato com arueira, planta muito comum na região, e que há três dias vinha se benzendo com a avó, ocorrendo melhora considerável, porém naquela noite a situação havia piorado e por isso veio buscar auxílio. Disse que não queria tomar muitos remédios, afinal tinha ouvido falar que não era bom pro fígado. A médica ouviu a história, perguntou sobre a família e prescreveu um anti-histamínico sistêmico, um creme tópico e benzeduras duas vezes ao dia, logo após tomar o medicamento, durante os dias que ele tomasse o remédio para que juntos eles propiciassem a melhora completa.
Outro dia aprendi a coletar o exame de citopatológico, como enxergar o colo do útero e como cada mulher é única e reage de maneira diferente a tal exame. Além disso, aprendi realizar o exame bimanual das mamas e muito sobre saúde da mulher, vi que assuntos tidos como tabus na sociedade devem sim ser abordados e podem fazer toda a diferença. Ver tantas mulheres cuidando da própria saúde, preocupadas consigo, deixando a vergonha de lado e realizando tais exames foi extremamente inspirador.
Conversei sobre planejamento familiar, sobre ciclo menstrual e início do uso de anticoncepcional oral com uma adolescente de 17 anos, conversamos sobre o aplicativo Flo para ajudá-la a ter os dados de quando a menstruação está descendo, os sintomas de TPM, entre outros detalhes. Conversei muito sobre câncer de pele e uso de protetor solar, afinal é algo extremamente frequente naquela população. Atendi criança de meses até idoso de 94. Fui reconhecida por uma paciente por já ter atendido sua neta no ambulatório de pneumologia do HU, fiz alguns encaminhamentos, solicitei exames e aprendi sobre as burocracias de papeladas que existem e pude ver de forma mais clara como a rede de cuidados funciona. 
Tive a oportunidade de ter um momento de fala na sala de espera, em um dia que tinha muitas pessoas aguardando atendimento, conversamos sobre o funcionamento do SUS e principalmente sobre o acolhimento e o agendamento das consultas, algo que tem gerado dúvidas e alguns problemas na UBSF. Também conversei sobre uso consciente de medicamentos, tirei dúvidas dos que ali estavam sobre tais assuntos e trocamos conhecimentos.
Além disso, durante uma reunião de equipe fiz uma fala sobre o uso de tecnologias a favor da saúde, como o uso de aplicativos como o Medsafe e Flo, como as ACS poderiam inserir isso para auxiliar pacientes ou cuidadores a não se esquecerem dos horários dos medicamentos ou até mesmo no planejamento familiar auxiliando as mulheres a controlarem o ciclo. Também conversamos sobre a importância do autocuidado, que elas devem tirar um tempo para si e se preocupar com a própria saúde, passando dicas de alongamentos e exercícios laborais. Mas o ponto forte da conversa foi sobre plantas medicinais, todas começaram a contar sobre os chás que usavam em casa ou que aprenderam com suas avós, falaram sobre quais a população usava e a vontade de construir na unidade um relógio biológico na UBSF. Acabei deixando de presente um livro fruto de um projeto de extensão da UFPR sobre esse assunto para que elas pudessem usar para orientar quando usar, não usar e como preparar. Foi uma troca de experiências incrível.  Também conversamos sobre o potencial de interação entre chás e medicamentos comuns, sobre a “dose” de tais plantas e como também precisamos cuidar sobre isso. Senti que nesse dia a semente sobre o assunto que já existia foi regada mais uma vez e quem sabe floresça em breve.
Durante meu período de vivências tive a oportunidade de participar do encontrão do ESF de Rio Grande, participei de uma oficina sobre como aprender a preparar sal temperado e um substituto natural para o “dersani” com óleo de soja, repolho, tansagem e mil-folhas, alternativa de baixo custo e acesso para ser usada em curativos. Também aprendi mais sobre o potencial cicatrizante da babosa. Visitei a tenda de plantas medicinais da UBSF do Povo Novo, conheci o potencial da calêndula como pomada cicatrizante e vi como o relógio biológico vem fazendo a diferença para aquela população.
Tive a oportunidade de conhecer a Ilha dos Marinheiros, um pedaço do paraíso na terra.  Aprendi sobre agricultura familiar, peixes da região, a importância econômica do salgar da Laguna dos Patos com seus camarões para as famílias que ali vivem. Descobre que Dom Pedro já esteve por aquelas terras, dando nome ao Porto do Rei. Descobri a comunidade de pesca da Marambaia, o motivo de determinada região da ilha se chamar Coréia, comi bolinho de peixe e conheci a famosa Jurupiga da lha. Vi a colheita de cebola acontecer, ganhei de presente vagem sem agrotóxico e tomei um café da tarde com pão caseiro e doce de abóbora trazido por uma paciente de 84 anos, que teve o cuidado de preparar um doce especial para o enfermeiro chefe da unidade que é diabético.
Aprendi tanto sobre tanto nesse período. Vi uma medicina humanizada acontecer na prática, unindo saber popular e científico, vi um SUS que mesmo com pouco funciona e dá certo, vi profissionais que amam o que fazem, que apesar da distância, poeira no caminho, do balançar do barco ou do carro com diversos problemas chegam com um sorriso no rosto e dão o seu melhor todos os dias. Vi o lado não tão bonito da medicina e as suas dificuldades. Me deparei com mazelas sociais complexas. Mas o mais importante, no geral, vi uma medicina diferente, aquela empática, inclusiva, não soberana e acessível acontecer.
Fui acolhida por uma equipe muito singular, repleta de diferenças mas que a sua maneira funciona muito bem junta. Recebi café  dentro do consultório, almocei na casa de uma das técnicas e tive a honra de receber um almoço de despedida. Compartilhei histórias e conhecimentos com eles durante essas duas semanas, aprendi sobre história de Rio Grande, locais bons de comprar carne e passear na cidade que tem me acolhido há 3 anos.
Aprendi muito sobre a profissional que quero ser, sobre sensibilidades que preciso ter e desenvolver nos anos de graduação que tenho pela frente e nos que se seguirão depois. Aprendi que com pouco é possível fazer muito, principalmente quando se faz de coração e por amor.
Reinventei-me em cada consulta, cada aprendizado, cada história. Não sou mais a mesma. Vi que posso sim sonhar com um SUS que funciona, que posso fazer a diferença, que devo por amor em cada atendimento, que tenho tantos privilégios pelo qual devo ser grata, aprendi sobre resiliência, autocontrole, autoconfiança...
Simplesmente gratidão a cada paciente que me permitiu conhecer um pouco da sua história, a equipe que me acolheu tão bem, a Liga de Educação em Saúde pela oportunidade, a Ilha dos Marinheiros por ser um lugar tão mágico e ímpar.
Com carinho, Luísa do Couto Sponchiado

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