Vivências 2019-2020




Relato de Vivência em Medicina de Família e Comunidade 2019
Melissa de Carvalho Santuchi
acadêmica do 1° ano de Medicina/FURG

O que é a Medicina de Família e Comunidade (MFC)? Ela e Clínica Médica são a mesma coisa? Qual a sua importância para a população brasileira? Essas eram algumas das perguntas que permeavam a minha mente antes de começar o curso de Medicina na FURG em 2019. Até então, para mim, a existência do médico de família e comunidade parecia estar restrita a seriados americanos e havia uma série de dúvidas sobre essa especialidade médica e sobre como ela se encaixava no contexto do nosso país.

Antes de tudo, não posso iniciar esse relato sem compartilhar uma história pessoal que se tornou um dos motivos pelos quais decidi ingressar na Medicina e participar da Vivência em MFC. Minha mãe nasceu e viveu até os 12 anos em uma comunidade rural no interior de Minas Gerais, onde os serviços de saúde mais básicos não eram oferecidos da maneira e com a frequência com que se faziam necessários. Os anos passaram-se e o Brasil cresceu; o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Estratégia de Saúde da Família foram criados e os indicadores sociais gerais melhoraram; eu nasci, cresci, formei-me em Ciências Biológicas e, em meados de 2010, aquela mesma comunidade permanecia estagnada com as mesmas questões sociais envolvendo a saúde, a educação etc. Agora, porém, havia uma Unidade Básica de Saúde na rua principal, mas que abria apenas duas vezes na semana em um único turno para atender uma população extremamente carente e que necessitava de maior amparo social com políticas públicas eficientes.

O motivo de eu compartilhar essa pequena lembrança é o fato de que meus olhos começaram a se abrir para importância da Medicina de Família e Comunidade em um momento que eu nem fazia ideia que ela existia. Meu pensamento passou de “passei anos sem vir aqui e continua tudo a mesma coisa”, como se fosse um poema drummondiano, para “por que as coisas aqui não melhoram? O que é necessário para que isso ocorra?” e “se essas pessoas apenas soubessem como pequenas atitudes e cuidados poderiam fazer toda a diferença na vida delas, como tirar água dos pneus e fervê-la antes de usá-la...”. Pois, veja, a Medicina de Família e Comunidade naturalmente exige um olhar crítico e a compreensão da realidade na qual vivemos – isso foi o começo do meu interesse por uma Medicina mais humana, mais próxima de quem dela necessita e que entre na casa de cada um e faça a diferença para aquela família e para aquela comunidade.

O primeiro ano de faculdade foi imprescindível para que eu entendesse melhor do que se tratava tudo isso. A disciplina de Relação Médica nos havia inserido nas realidades das Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) e de diferentes comunidades da Cidade do Rio Grande e a disciplina de Teoria Geral da Saúde mostrou-nos a história e a estruturação do SUS. Não há mais como ignorar ou diminuir a importância da MFC para o Brasil; e esse sentimento só se fortaleceu com a Vivência em MFC organizada pela Liga de Educação em Saúde da Universidade Federal de Rio Grande. Durante duas semanas inteiras, tive a oportunidade de acompanhar o trabalho da equipe da UBSF Marluz, incluindo consultas, acolhimentos, visitas domiciliares e grupos de gestantes. Foi um período de grande aprendizado para mim, mesmo tendo concluído apenas o primeiro ano da faculdade e ainda não ter cursado semiologia e clínica médica, pois pude utilizar de conhecimentos já adquiridos e agregar outros que serão indispensáveis durante a minha prática médica.

Na primeira semana, acompanhei uma visita domiciliar de uma paciente idosa junto à
residente R1 Caroline Naimeg. Esta paciente, antes uma senhora cheia de vida e vaidosa,
encontrava-se acamada com bastante dor após um diagnóstico de lesão hepática. Ela estava
bastante assustada e abalada com a possibilidade de ser um tumor maligno, algo que ainda
havia sido comentado, mas não confirmado, pela equipe que a acompanhava. Assim, essa
incerteza e a falta de conhecimento acerca do assunto contribuíram para que sua experiência
da doença piorasse substancialmente. Ao tentar contornar a situação da melhor maneira
possível, Caroline buscou conversar e compreender como aquilo a afetava, observando que a
paciente era apegada à religião católica e devota de Nossa Senhora de Fátima – o que, para
ela, significava conforto frente a diferentes obstáculos da vida. Então, a residente sugeriu que,
juntas, fizessem uma oração e que a paciente se apoiasse em sua fé para enfrentar o futuro, o
que, naquele momento, permitiu que o sentimento de desamparo da idosa fosse, aos poucos,
substituído por um pouco de paz e calma. Ao sairmos da casa da paciente, encontrei-me
maravilhada e iluminada com a forma como o cuidado integral da pessoa havia sido
importante para que ela sentisse menos medo e mais confiança para enfrentar os próximos
eventos da sua vida.

Ainda nesse período, pude acompanhar algumas consultas conduzidas pela acadêmica
do 6° ano de Medicina/FURG Júlia Deretti, que, assim como eu, é deficiente auditiva. Vê-la
conduzindo as consultas com confiança e tranquilidade foi, para mim, um alívio e também me
trouxe esperança em relação ao futuro, quando eu teria que lidar diretamente com os
pacientes. Colocado assim, pode soar banal, mas uma das minhas grandes preocupações em
termos de atendimento médico sempre foi, sem dúvida, se eu conseguiria auscultar o coração,
os pulmões e outras áreas com clareza e segurança suficientes para ajudar a pessoa que
estivesse sob os meus cuidados. Portanto, observar a maneira como a Júlia portou-se durante
as consultas, mesmo com o espanto de alguns pacientes quando perceberam a sua condição,
deu-me algo e alguém a quem me espelhar e me lembrar durante meus próximos anos na
faculdade. Portanto, sou grata por ter tido essa oportunidade incrível ainda no começo da
Vivência, porque isso também me deixou mais confortável para assumir o meu papel de
estudante de Medicina e de futura médica.

Um terceiro momento de grande aprendizado ocorreu em uma consulta de outra
paciente idosa, hipertensa, diabética, com insônia e insuficiência renal crônica, à qual foi
solicitada que trouxesse todos os remédios que tomava para avaliação das prescrições e do
plano terapêutico. Todos assustamos – eu, o acadêmico do 3° ano que eu acompanhava e as
duas residentes em MFC – quando a paciente trouxe uma sacola com mais de 20 medicações,
a maioria de uso contínuo e contraindicada para ela devido ao quadro de IRC. Com tantos
remédios, ocorriam interações medicamentosas que pioravam a condição dela e a tornavam
ainda mais dependente de novas prescrições. Para ajudá-la, fizemos a retirada inicial de mais
de 10 remédios e lhe explicamos o porquê da desprescrição, evitando, assim, que a conduta
médica causasse dano adicional à paciente, o que foi um exemplo prático claro de prevenção
quaternária na UBSF e da importância de sempre estarmos atentos ao fato de que prescrever
e tomar remédios indiscriminadamente tornou-se um hábito com consequência graves para a
saúde humana.

Após tantas experiências, algumas de minhas antigas dúvidas foram sanadas: a MFC é,
antes de tudo, o cuidado integral da pessoa; ela possui algumas similaridades com a Clínica
Médica, mas percorre caminhos diferentes no amparo à saúde do paciente; e, sem a MFC, não
seria possível atender às principais doutrinas do SUS. Assim, saio do primeiro ano de Medicina
e da Vivência em MFC com outro olhar sobre a vida humana: a importância do cuidado, da
alteridade, da paciência e, principalmente, a de sempre nos lembrarmos do nosso papel. Além
disso, hoje enxergo o SUS de forma mais otimista e compreensiva: um sistema universal, bem
estruturado e capaz de atender à população, se bem gerenciado e utilizado. Logo, a Vivência
em MFC teve um papel fundamental no meu amadurecimento como futura profissional de
saúde, não apenas por ter me permitido vivenciar as diferentes nuances da prática médica
como também por ter contribuído para o que eu desejo e espero da mim mesma em alguns
anos.

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