Vivências em MFC na UBSF Cidade de Águeda - Hingrid Glaesar


Vivências em medicina de família e comunidade
UBSF Cidade de Águeda

Hingrid Glaeser,
Acadêmica de medicina do primeiro ano, FURG

         No meu primeiro plantão no centro obstétrico, eu olhei para a interna, uma amiga muito querida e disse “hoje vão nascer trigêmeos”, ai ela olhou pro residente e confirmou se ele tinha ouvido, a resposta foram risadas e a pergunta se era o meu primeiro plantão, eu confirmei com a cabeça e estava tudo explicado, pelo menos pra ele.
          Tá, mas o que isso tem haver com a tua experiência na UBSF, Hingrid? 
          Queria te situar, caro leitor, porque foi exatamente essa mesma Hingrid que pegou carona com o Vinicius, R2 em MFC e que foi o caminho inteiro falando como estava empolgada com essa experiência e como a estratégia de saúde da família e o SUS eram incríveis e aaaaa, meu Deus estou tão empolgada. Ainda mais porque eu ia ver a dona Elvira de novo.
          - Hingrid, tá muito rápido, me perdi, quem é a dona Elvira?
          Dona Elvira é um pseudônimo para uma senhora que eu e um colega visitamos algumas vezes durante as atividades práticas de relação médica, uma disciplina do primeiro ano de medicina na FURG, mas voltando à dona Elvira porque ela é digna de um livro inteiro e eu nunca vou ser fiel o bastante a magnitude dessa mulher, mas vamos tentar,  quando eu a conheci, eu era uma estudante de medicina fazendo aquilo que mais fazemos: incomodar pacientes. Mas, então, a dona Elvira me abraçou como a uma neta, me contou sobre as  suas batalhas, derrotas, vitórias... e fez com que eu deixasse de ser somente uma estudante de medicina, com ela eu era eu e estava tudo bem, veja bem, caro leitor, foi um ano muito difícil na faculdade e ser só eu não estava sendo o suficiente, menos ali com a dona Elvira. Enfim, voltemos para o foco principal dessa narrativa: As vivências.
          Quando chegamos na UBSF e fomos para o consultório, após as boas vindas, a primeira frase dita para aquela menina que vivia no fantástico mundo da MFC, onde tudo são rosas, foi: Agora você vai ver os espinhos! É, Vini, eu vi muitos espinhos e vou te dizer que doeu, viu? Sair do fantástico mundo da MFC, mas nem de longe os espinhos se comparam ao perfume das rosas.
          Vamos começar, então, pelo maior espinho de todos: a desigualdade social, nos quinze dias de vivências, eu conheci a verdadeira cara da extrema pobreza, tivemos contato com inúmeros pacientes que tinham doenças simples como infecção urinária mas que não tinham condições de ir até o laboratório de referência para coletar o antibiograma e o tratamento padrão não havia surtido efeito. E aí essa paciente voltava dia sim, dia não.
          Também tive a oportunidade de conhecer a Brenda, uma mulher de 28 anos, com sangramento vaginal há três meses, esse sangramento tinha começado após o parto do seu filho Vitor, então depois de fazer tudo que estava ao seu alcance, o médico encaminhou ela para a emergência do HU para que lá com todo o aparato hospitalar, a Brenda fosse tratada. Dois dias depois, ela voltou com o filho para a consulta de rotina dele e eu quase não a reconheci, ela parecia outra mulher, a causa do sangramento era um resquício da placenta que havia sido retirado no hospital e o problema dela tinha sido resolvido. Isso foi um aprendizado para mim porque no auge da minha prepotência, eu sentia que era a gente que precisava lidar com o problema e me senti muito mal de ver que não havia estrutura para isso, mas sabe, caro leitor, eu aprendi que nem se eu estivesse no melhor e mais bem equipado hospital do mundo conseguiria lidar com todos os problemas de todos os meus pacientes sozinha e está tudo bem porque médicos não são super heróis e até o Thor tem seus limites.
          Nessa altura do campeonato eu já tinha criado coragem o suficiente para perguntar sobre a dona Elvira, se eu podia fazer uma visita domiciliar, e a notícia do seu óbito veio como uma pancada bem na minha cara e que pancada, viu? Eu nem consegui me despedir...
          Mas voltemos novamente ao foco, agora vamos falar da Maria, uma adolescente de 15 anos, primeiro conheci sua mãe Joana, que veio ao consultório para um retorno e ao final da consulta desabafou sobre os problemas que estava tendo com a filha, o médico Vinicius, então, pediu para que ela marcasse um retorno e voltasse com a filha junto. Pois vieram, Maria passou os 20 minutos da consulta calada, no máximo concordando com a cabeça, até que o Vinicius pediu para conversar um pouco sozinho com ela, sem a mãe e, nesse momento, Maria se mostrou de verdade, mostrou todo o seu sofrimento e angustia, contou a sua versão da história e esse foi um dos espinhos mais dolorosos pois Maria sofria de um problema que não tínhamos como resolver somente trocando a medicação ou adicionando uma outra substância, não, Maria precisava ser ouvida e ter espaço para isso, não só na UBSF mas em casa, ela precisava ser respeitada, ter sua vontade respeitada pela família, pela sociedade e, para além disso, precisava de opções que a gente não poderia dar a ela em 50 minutos de conversa. 
          Mas fico orgulhosa em saber que existem médicos com competências psicossociais como o Vinicius, que quando a mãe voltou ao consultório deixou, na medida do possível, uma sementinha de esperança e conciliação para aquelas duas mulheres.
          E, lembrar da Maria, me fez lembrar também das inúmeras vezes que eu e a Ana, uma colega do quarto ano que me ensinou muitas coisas para além da medicina e seria injusto não citar sua presença e sua importância para o aproveitamento dessa experiência, oferecemos e promovemos os cursinhos populares que são oferecidos pelos acadêmicos da FURG e também o EJA para pacientes que a gente percebia que tinham interesse em estudar para ter um futuro melhor, notei durante a quinzena na UBSF que pelo menos um terço dos problemas de saúde que apareceram no consultório seriam resolvidos com educação de qualidade, promoção da permanência dessas pessoas na escola e condições adequadas de moradia e de trabalho, coisas que, infelizmente, não estão totalmente ao nosso alcance.
          Enfim, queria agradecer de coração à LES por proporcionar essas experiências enriquecedoras não só a mim, à UBSF cidade de Águeda e toda a equipe por me receber de maneira tão amorosa, em especial ao Vinicius, pelas caronas e pela paciência. Eu com toda certeza mudei e amadureci muito durante esses quinze dias que foram deliciosos.


Hingrid Glaeser (ao centro) e parte da equipe da UBSF Cidade de Águeda - Rio Grande/RS.




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